terça-feira, 4 de junho de 2013

A invasão

A estrada que cortava o vilarejo estava deserta e escura. Não havia lua no céu, e as nuvens tapavam as estrelas. Yorgi saía da taverna embriagado, carregando consigo ainda um resto de vinho doce que a taverneira colocara para ele num cantil feito de pele de texugo. “Amargo” era o que ele pensava. Cambaleava as cegas, deixando que os pés o guiassem até sua casa. “Amargo”. Novamente o conceito se punha em sua mente. Mas que coisa estranha, não teria a taverneira colocado vinho doce no seu cantil? Seria possível que Brigid, a taverneira e meretriz havia enganado-o, colocando vinho amargo, vinagre em seu cantil? Precisava urinar. Desviou-se alguns metros da estrada que cortava o vilarejo. Sentindo a boca mais amarga, ele terminou de aliviar-se e tentou voltar para a estrada, decidido a ir até a taverna esclarecer a situação. Girou de forma estranha, para retomar o caminho de onde estava vindo e levantou a cabeça, tentando enxergar alguma referencia em meio ao breu, desconhecendo se o rumo que tomava era o correto. Bom, ele tomaria aquela direção e se não chegasse até a taverna, chegaria em casa. Deu mais alguns passos vacilantes, pendendo ora para um lado, ora para outro. “Amargo”. Aquele gosto em sua boca estava se tornando insuportável. Mas ele não havia bebido mais nem um gole do vinho desde que o gosto de fel invadiu sua boca, ou havia? Com a cabeça pendendo para frente e tentando manter a firmeza das pernas ele continuou seu caminho, percebendo em seus ouvidos um leve zumbido. Parecia que uma mosca havia se aproximado e começado a voar em volta de sua cabeça. Que porcaria seria aquela? Moscas numa noite fria daquelas? Ele definitivamente deveria ter tomado banho na ultima semana; seu cheiro devia estar realmente ruim para atrair seres tão incômodos àquela hora. Lutou contra a mosca sem enxergá-la, dando golpes frouxos no ar em volta de sua cabeça. Mas o inseto parecia estar chegando cada vez mais perto.
Yorgi estapeou a própria orelha, desequilibrou-se e caiu sobre os fundilhos numa poça de lama. O gosto bilioso estava terrível na boca e ele cuspiu, mas de nada adiantou, pois o amargor permanecia em sua língua. Seria veneno o que Brigid dera a ele no cantil? E aquela mosca, maldita mosca, zumbia tão alto que parecia estar voando dentro do seu ouvido. Ele se levantou, decidido a ir até a taverna. Aquele vinho estava fazendo-lhe mal, e ele estapearia Brigid por isso. De pé, enlameado e gotejante ele andou a esmo um pouco mais. Mas já não conseguia pensar em mais nada; percebeu que o barulho não vinha de mosca alguma, mas sim de dentro de sua cabeça, dominando-lhe a mente. Havia sido envenenado, agora tinha certeza. Aquele gosto acre estava tão forte que Yorgi começou a salivar compulsivamente. Caiu de joelhos e vomitou duas, três vezes. Jorros fortes, espasmos tão poderosos que seu abdômen doía. Sentiu cãibras na barriga e pensou que estava morrendo. Deitou-se de costas na estrada e amaldiçoou a taverneira e seu vinho venenoso. O ruido era mais alto que as pragas que ele rogava, sentia-se como se uma colmeia inteira estivesse dentro de sua cabeça. Com olhos turvos de dor e agonia, ele viu que no céu, bem acima de sua cabeça, as nuvens formavam um ponto levemente esverdeado. Esverdeado? É o veneno. “Deus misericordioso leve depressa minha alma ao purgatório”, Yorgi começou a rezar. O Amargor tornou-se insuportável. O zumbido iria explodir sua cabeça a qualquer minuto agora, ele suplicou que aquele tormento acabasse logo. Olhando o céu, ele percebeu, enquanto sua boca parecia queimar com fel, que quanto mais alto ficava o ruído, mais verdes se tornavam as nuvens. E então, elas explodiram num barulho surdo e profundo, como um tambor de guerra dinamarquês, abrindo o céu num clarão esverdeado, que cegou Yorgi por um instante. O zumbido parou, o amargor sumiu de sua boca.
Formou-se um circulo no firmamento, como se as nuvens fugissem de alguma coisa e subissem umas nas outras, criando uma espécie de clareira bem acima de sua cabeça. Oh, Deus, o que é isso? Olhando para cima com os olhos turvos, ainda meio ofuscados, viu uma luz esverdeada riscar num piscar de olhos a clareira aberta nas nuvens e desaparecer sem ruido no meio de um bosque próximo. Aturdido, levantou-se. Sentia-se bem, todas as sensações terríveis que experimentara até então haviam sumido quando o céu explodiu. Mesmo sua embriaguez havia desaparecido parcialmente, talvez por ter vomitado todo o vinho que bebera. Ainda que não entendesse de onde viera seu mal estar nem para onde ele fora, Yorgi se pôs a pensar sobre aquele estranho acontecimento. O que era aquilo? Havia algo na ponta daquela luz verde, ele tinha certeza de ter visto. Após ponderar por um momento, lembrou-se que quando lutou junto dos dinamarqueses, havia uma história sobre um deus que deixara certa vez cair na terra um martelo, arma formidável. Será que era isso? Ele se levantou. Se conseguisse pegar a arma de um deus, imagine só? E se o simples fato de o objeto ter caído do céu tivesse lhe causado toda aquela aflição? Seria este um dos poderes divinos do martelo? Ele poderia dar cabo de Lorde Dimitrii, aquele engomado de uma figa que roubava nas tarifas e exigia seu direito sobre as mulheres da aldeia. Sim, ele se tornaria o novo nobre com a arma de um deus, e exigiria para si o direito sobre as mulheres. Isso, os deuses do norte talvez estivessem dando-lhe um presente por lutar ao lado dos dinamarqueses, quem sabe? Levantou-se e olhou para os lados. Ninguém fora das casas. Com sorte ele encontraria a arma antes que outro o fizesse. Já não cambaleava tanto, sua mente estava mais organizada. Rumou para o bosque, procurando o local onde havia caído o martelo. Estava ficando quente ali, e nenhum animal se movia, mas Yorgi não se deu conta. Sim, ele faria aos deuses do norte as devidas reverencias para agradecer aquele presente, mas antes ele resolveria sua vida, e esmagaria o crânio de Lorde Dimitrii e seus seguidores. Primeiro ele exigiria seu direito sobre Sibil, a filha do nobre. Sim, ela era bonita, tinha os dentes no lugar e suas ancas eram largas. Sorrindo, ele saltou sobre um tronco caído. Quase poderia dançar, ao imaginar Sibil trêmula e nua esperando que ele fizesse valer seus direitos de governante.
Yorgi chegou até o local, mas se decepcionou. Um disco gigante, feito de um metal que ele não conhecia, jazia placidamente numa clareira. Isso era um escudo dinamarquês gigante? Poderia ser. Mas se fosse a égide gigante de um deus nórdico, não teria serventia para ele. Desapontado, mas ainda curioso, ele se aproximou. Talvez no escudo houvesse alguma coisa dos deuses que fosse útil. Um escudo daquele tamanho certamente exigia um braço colossal. Quem sabe não encontraria um pelo do braço do deus preso no escudo? Um deus com membros grandes o suficiente para portar aquele escudo com certeza teria pelos compridos o suficiente para fazer um chicote, e sendo este feito de um pedaço de deus, não seria uma arma poderosíssima? Alisou o metal morno e macio, procurando descobrir do que se tratava. Estranho, muito estranho. Parecia vibrar como se houvesse alguma coisa dentro. Abaixou-se para olhar por baixo, mas não viu nada. Não era alto o suficiente para olhar por cima, mas via que de cima algo brilhava num tom esverdeado. Talvez alguma joia? Ótimo, mesmo que não ficasse poderoso, ficaria rico, o que no fim daria na mesma. Circulou o objeto, tentando encontrar um apoio para subir, mas sem sucesso. Decidiu subir numa arvore próxima e olhar de cima. Quando se preparava para escalar aquela que havia julgado ser a mais próxima, escutou passos atrás de si, e virou-se rapidamente; Três estampidos curtos e amontoados uns nos outros cortaram o ar, reverberando na floresta silenciosa. Yorgi levou a mão ao peito, tocando três furos de onde o sangue fluía farto, e levantou os olhos arregalados para ver o que o havia atingido. Abobalhado, ele baixou os olhos e contemplou por um segundo o sangue em seus dedos. Depois caiu de joelhos, pendeu para frente, e morreu. Uma mulher de fuzil na mão se aproximou do corpo, cutucou-o com a ponta do coturno. Ao se assegurar da morte do homem, ela tocou o ouvido e disse: “Mothertime, this is soldier Amata. Project Time Colonization had to start earlier, first tango down, over”.


Quem é o bardo?: Tio Barney Bee vive numa cabana tão velha quanto ele no topo daquela colina verde. Ele ainda toca seu banjo, mas a beleza de sua voz já se foi, e agora ele prefere contar do que cantar as histórias que viu em suas aventuras. Contato: E-mail | Facebook.


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