domingo, 2 de fevereiro de 2020

RPG: Fracassos e Sucessos


RPG é sobre diversão e singularidade. As possibilidades são infinitas de modo que não há forma certa de se jogar, mas há forma errada: quando não é divertido para algum dos envolvidos. Ultimamente tenho visto, em vários grupos nas redes sociais, perguntas e comentários sobre os fracassos do RPG, quero dizer, como um jogo com tanto potencial de diversão e desenvolvimento pessoal (além de ser excelente ferramenta pedagógica e psicológica) muitas vezes se torna fonte de aborrecimento, sofrimento e mal-estar. Desde a velha e conhecida fala "estou sem tempo para jogar", que desanima muita gente, até as “brincadeiras” que na real são atitudes preconceituosas e ofensivas por parte de alguns jogadores. Pensando nessas questões resolvi escrever falando um pouco da minha experiência com o RPG e como ele pode ser maravilhoso ou terrível.

Contexto
Em um mundo capitalista jogos de RPG tendem ao fracasso, por inúmeros motivos, é quase um milagre que ainda existam. RPG é uma atividade de nicho e provavelmente vai continuar sendo por algum tempo; trabalhar com RPG não é algo tão rentável como outros tipos de jogos, o que faz com que muitas lojas optem por não incluir em seu catálogo. RPG não chega nem perto de movimentar cifras tão altas como os e-sports, não é tão popular em alguns lugares, nem sempre há um mercado mais ou menos estabelecido para se inserir. Se não gera lucro não é divulgado e difundido com tanta força, este é um fator importante em nosso mundo capitalista.

Vivemos numa sociedade imediatista, onde a busca pelos prazeres imediatos é frequente. Isso não está desarticulado com a pauta do capital e da falta de tempo. Lembrem-se, tempo é dinheiro e ninguém quer perder nenhum dos dois. Sendo assim o entretenimento (prazer) deve ser algo que não tome muito tempo e nem exija muito trabalho, já que os sujeitos devem empregar seu tempo trabalhando para gerar lucros para seus empregadores. O cansaço mental, esgotamento psicológico e demais stress são questões que afetam muitas pessoas, principalmente nas grandes cidades, por causa da correria cotidiana. Em seu tempo livre é muito mais comum que entretenimentos que não exijam tanto psiquicamente sejam preferidos. Dá muito mais trabalho organizar uma mesa de RPG, criar histórias, planejar sessões, criar NPCs, fazer fichas, juntar um grupo bacana, arrumar horário na agenda de todos do que simplesmente ligar o computador ou console, rodar um game e jogar por algumas horas, ainda mais quando em mmo e moba cada um já tem uma função mais ou menos bem definida. Reunir amigos por poucas horas para jogar um boardgame ou card game que já vem "pronto" também são opções de entretenimento menos trabalhosa que jogar RPG. Não quero com isso dizer que esses jogos são mais fáceis e bobos, muito pelo contrário, vários deles são extremamente desafiadores e bem divertidos, mas é bem mais cansativo criar e interpretar do que executar uma função ou tática apertando botões, movendo pininhos ou jogando cartas.

Organizar uma mesa de RPG ainda é mais complicado, porque por mais que tudo dê certo: todos consigam conciliar seus horários, ler os livros, criar personagens bem interessantes e produzir uma aventura boa, ainda tem o fator "lidar com o outro", algo que nem sempre é tão fácil ou agradável. Muitos grupos acabam porque alguns tem muito trabalho para criar histórias, desenvolver cenário e tudo mais para na hora do jogo ter que lidar com jogador tóxico, com síndrome de protagonista ou babaquices de outros tipos (machismo, racismo, sexismo, divergência política e afins). Já vi mesas acabarem por muito menos, na verdade. Já vi pessoas com problemas psicológicos graves arrumando briga com outros jogadores, jogador com sexualidade mal resolvida implicar com quem é assumido, gente com atitudes mesquinhas em relação a comida que era levada para a mesa, síndrome do dono da bola, ou rivalidade entre jogadores, e por aí vai. Eu não sei como é jogar RPG em outros países, mas em um território tão polarizado como o Brasil essas questões são ainda mais presentes.

Não é legal dedicar algumas horas da sua semana corrida e atribulada para escapar das obrigações cotidianas e se divertir, e acabar se aborrecendo com "brincadeiras" preconceituosas (que de brincadeira não tem nada) e atitudes inconvenientes, arrogantes e até mesmo ofensivas. RPG também é sobre se divertir trabalhando em equipe, e não dá para se divertir com quem te ofende ou monopoliza o jogo.

Não vou dar uma de isentão e fingir perfeição. É preciso se implicar e dizer que também já fui babaca e tóxico, já contribuí para produzir mal-estar e desagrado em mesa de jogo. As pessoas não são perfeitas e eu também não. Não quero com isso me defender ou me exaltar, erros devem ser reparados e nós devemos aprender com eles. O mundo já tem muitos problemas com as minorias e suas diferenças para que a atividade do RPG seja mais uma fonte de desigualdade e violência.

Sem contar esses problemas citados, ainda tem mais um que é a falta de espaço. Alguns grupos não tem onde se reunir e simplesmente não conseguem jogar por causa disso. Distância e mobilidade urbana também tem sua parcela de influência e contribuem para o cansaço de alguns jogadores. Locais públicos e de fácil acesso para se jogar com amigos nem sempre é uma opção, ainda mais em cidades de pequeno e médio porte.


Alternativas
Apesar de toda essa problemática não é hora de desanimar amigos, enfrentar injustiças e resolver problemas é coisa de RPGista! Estamos vivendo um momento de ouro no cenário nacional de RPG, grandes títulos internacionais estão sendo trazidos para cá enquanto clássicos nacionais se desenvolvem cada vez mais e alcançam patamares nunca antes alcançados, além, é claro, de títulos independentes surgirem com mais frequência. De maneira geral, hoje o RPG está muito mais barato e acessível do que há uma ou duas décadas atrás.


Mesmo com todas essas questões e detalhes nada animadores, muitos grupos conseguem manter um ritmo de jogo saudável e bem divertido. Pessoalmente já passei por vários desses problemas que citei acima, mas atualmente tenho um grupo de jogadores dedicados com o RPG, gente que, além de serem grandes amigos (o que contribui muito para ótimas sessões) também se dedica a ler os livros, criar personagens e história bem interessantes e a fazer sessões de jogatina bem legais, leves, relaxantes e divertidas. Acho que se posso dar uma dica para quem tem algum desses problemas com o cansaço e o stress por causa do RPG é: procure jogar com amigos, com gente que tem gostos parecidos e que não vá estragar a sessão com comentários idiotas e tóxicos. Não tem esse tipo de gente por perto? Seus amigos legais não jogam? Mostre a eles como RPG é legal e divertido. Fazer de uma sessão de jogo uma reunião de amigos com boa conversa e boa comida sempre ajuda a aliviar o cansaço e stress.

Muitos desses fatores negativos me impulsionaram a reunir amigos e tomar a iniciativa de fundar o COCAR (Coletivo Campista de RPG). Estamos inseridos em um contexto local, uma cidade de médio porte no interior do estado onde há uma quantidade razoável de RPGistas e pouca interação entre a comunidade. Os grupos existem em bolhas e panelinhas. Grande parte dos RPGistas locais são herdeiros da geração xerox e muitas pautas progressistas ainda pairam em uma aura de tabu. Apesar de ter muitos jogadores, grande parte da população desconhece RPG, associando o termo à fisioterapia e não a jogos de interpretação. A ideia do coletivo nasce com objetivo de unir os interessados e formar, de fato, uma comunidade, com troca de experiências, mesas de jogo e até eventos locais. Um dos objetivos do coletivo é também fomentar o mercado nerd local para que mais RPG chegue às prateleiras da cidade.

Considerando os problemas estruturais abordados na primeira parte deste texto, as dificuldades de se implantar um coletivo desses são muitas, desde a resistências pessoais até a falta de estrutura e incentivo local. Apesar das dificuldades e dores de cabeça o coletivo tem sido uma experiência interessante em vários aspectos; algumas pessoas passaram a conhecer os jogos de RPG e se divertir com eles, pautas como machismo, homofobia e demais preconceitos em mesas de jogo passaram a ter mais visibilidade, jogos menos conhecidos também passaram a ser um pouco mais acessíveis e divulgados, além disso uma agenda com eventos e mesas de jogo está se formando. Conseguimos poucas, e boas, parcerias na cidade, espaços onde podemos levar o RPG de forma divertida e segura para qualquer pessoa jogar.

Um ponto interessante é que estamos conseguindo, aos poucos, ressaltar que RPG é muito mais do que um grupo de homens brancos e heterossexuais que jogam sempre o mesmo jogo. Tudo bem se você se encaixa nesse padrão, não há problema algum nisso, mas se você não está inserido nesse tipo hegemônico e/ou heteronormativo o RPG também é para você. Igualmente se você está cansado de jogos clássicos de fantasia medieval, ou simplesmente não curte a temática, existe uma grande variedade de títulos e gêneros de jogo, e todos são divertidos. A diversidade compõe e os personagens de RPG estão aí para nos mostrar isso.

RPG também é sobre diversidade e comunidade. Não se joga RPG sozinho, é preciso um grupo para se compartilhar a experiência de uma mesa de jogo. Ainda que seja aconselhável se reunir com pessoas que tenham gostos parecidos e afinidades (eu mesmo dei esse conselho agora a pouco), também é interessante jogar com quem é diferente e não é do seu grupinho. Com um pouco de tolerância e muito respeito, inserir a diferença pode ser muito enriquecedor. Pessoalmente aprendi muito jogando e observando pessoas com estilos diferentes e isso é uma das coisas mais legais em dividir algumas horas da sua semana com um grupo de jogo.

Para concluir o texto quero dizer que o milagre que mantém o RPG existindo em meio à toda essa problemática é a boa vontade de muitos jogadores e mestres que se dedicam ao hobby porque sabem na prática o quão divertido e maravilhoso é a experiência de reunir amigos, conhecer pessoas e se divertir com elas escapando das frustrações e dificuldades da vida cotidiana.

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